sexta-feira, 12 de junho de 2009

Cotas de Talento

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Cotas de Talento

29 de Dezembro de 2008

Almiro Sena*

No que a concerne ao argumento de sua inviabilidade prática, já que no Brasil ninguém seria branco ou negro, pois todos são mestiços, é importante assinalar que o racismo brasileiro não é genotípico, mas fenotípico, pois considera como elemento determinante, não a influência genética maior ou menor da ancestralidade africana ou européia, porém o conjunto de caracteres superficiais(fenótipo) de cada indivíduo. Ou seja, segundo analisado pelo Professor Olacy Nogueira no seu Livro: Preconceito de Marca: as relações raciais em Itapetininga, a discriminação racial, no Brasil, assenta-se na cor da pele, na textura do cabelo, no formato do nariz, na espessura dos lábios e semelhantes, definindo-se, segundo o etnocentrismo europeu predominante, o fenótipo branco como o “mais bonito”, “o melhor”, enfim, “o ideal”.

Dessa forma, independente da mestiçagem que, efetivamente, alcança quase toda a totalidade da população brasileira, decorrente, inclusive, da intensa miscigenação dos principais povos que contribuíram para a sua formação, no Brasil, as relações sociais são acentuadamente marcadas pela identidade étnico/racial, bastando observar-se, por exemplo, como o grupo branco, preferencialmente louro, ocupa, quase exclusivamente: a programação da mídia televisiva; os melhores empregos nas grandes lojas dos shoppings centers; os cargos, empregos e funções públicas de livre nomeação e exoneração; os empregos de comissários de bordo e pilotos nas companhias aéreas de aviação comercial e outros.

Por outro lado, basta verificar-se qual o fenótipo dos cidadãos que, comumente, são indevidamente, barrados por seguranças e porteiros dos condomínios de classe média alta, apesar de, não raro, serem moradores do local, impedidos de entrar em boites da moda ou parados e revistados, muitas vezes de maneira desrespeitosa, nas blitzs policiais. Sobre isto, inclusive, o Professor Jorge da Silva, coronel da reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro, ex-secretário de direitos humanos daquele Estado e doutor em Ciências Sociais pela UERJ, tem uma frase irônica e lapidar: “se houver dificuldade em saber quem é branco ou negro no Brasil, pergunta a polícia que ela sabe.”

No que refere a alegação de que as cotas étnico/raciais fomentariam o ódio racial, não se pode olvidar que argumento idêntico vem sendo usado, através dos tempos, por quase todos os integrantes das classes privilegiadas, em quase todas as partes do mundo, quando se coloca em pauta quaisquer medidas que, de alguma forma, beneficie os menos favorecidos. Isto é, para os integrantes do establishment, o direito de liberdade de expressão garantido aos súditos, o direito ao livre exercício de culto religioso pelo povo, os direitos trabalhistas assegurados ao empregado e a própria extinção do regime escravocrata, sempre representaram um “perigo” para a “paz social” e o “bom convívio entre os povos”, provocando, à época em que foram conquistados, intensa resistência por parte das elites locais, a exemplo do que ocorreu no Brasil, quando, na segunda metade do Século XIX, parlamentares, juristas e intelectuais brasileiros, sob a justificativa de defenderem os interesses nacionais, apregoavam a manutenção da escravidão, sustentando, como Peixoto de Brito em suas Considerações gerais sobre a emancipação dos escravos no Império do Brasil e indicações dos meios próprios para realizá-la, publicadas em 1870, que:

“Entre as graves questões que no Império do Brasil dependem de uma solução mais ou menos próxima, colocamos em primeiro lugar a da emancipação dos escravos, que caminhando rapidamente para o seu termo fatal, ameaça a existência do país com uma grande catástrofe, a qual somente pela adoção oportuna de medidas razoáveis e prudentes se poderá conjurar.”

Nesse aspecto e diante da falta de posicionamento de importantes e respeitáveis setores da sociedade brasileira em relação à política de cotas étnico/raciais na universidade, bem se aplica a reflexão, adiante transcrita, do célebre defensor dos direitos civis, o Pastor Martin Luther King Jr., feita em contestação a idéia, sustentada por muitos, durante o período das covardes e hediondas perseguições à população negra nos Estados Unidos, na década de 1960, de que a população negra norte-americana deveria comportar-se passivamente, pois do contrário, se houvesse enfrentamento aos criminosos racistas, aumentaria o ódio racial. Como disse o Dr. King:

“O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem-caráter, nem dos sem-ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons.”

Por fim, a alegação de que as cotas para negros diminuiriam o nível acadêmico das universidades, como sempre ocorre com toda argumentação preconcebida, embasada tão somente na visão estereotipada e elitista acerca do outro, revelou-se, na prática, totalmente equivocada, vez que o desempenho dos alunos cotistas, segundo estudos realizados nos cursos de graduação que os acolheram, encontra-se sendo tão bom ou melhor do que os alunos não-cotistas destes mesmos cursos, conforme demonstrado nas instituições a seguir assinaladas.

Avaliação Acadêmica dos Estudantes Cotistas

Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, onde o sistema de cotas, implantado há cerca de cinco anos, contempla hoje 40% dos estudantes da instituição, segundo notícia do site Disponível em
http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/05/13/materia (Acesso dia 2008-05-13), a subsecretária da Reitoria, Lená Medeiros informa que o desempenho dos alunos cotistas e não-cotistas, a despeito dos empecilhos financeiros bem maiores enfrentados pelos primeiros, é muito semelhante, apresentando, em todos os cursos, idênticas dificuldades e idênticos aspectos positivos.

Na Universidade Estadual de Londrina – UEL, segundo o site Disponível em
http://carosamigos.terra.com.br/nova/ed116/so_no_site_reportagem.aspa (Acesso dia 2008-05-13) da Revista “Caros Amigos”, dos 14 mil alunos da graduação, 2.684 são cotistas e 626 negros, reservando-se 40% das vagas para quem estudou as quatro últimas séries do ensino fundamental e todo o ensino médio na escola pública, aferindo-se, segundo levantamento da própria universidade, que as médias dos cotistas e não-cotistas são muito semelhantes.

Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), também de acordo com o site Disponível em
http://carosamigos.terra.com.br/nova/ed116/so_no_site_reportagem.aspa (Acesso dia 2008-05-13) da Revista “Caros Amigos”, 45% das vagas são reservadas a estudantes de escolas públicas - 85% deles pretos ou pardos, constatando-se, na avaliação de desempenho das primeiras turmas, em 2005, que as médias dos cotistas são iguais ou superiores em mais da metade dos cursos, inclusive nos de alta demanda.

Os exemplos poderiam continuar, pois das 31 universidades estaduais e federais que, segundo levantamento da Revista Caros Amigos, atualmente (texto de dezembro de 2008. Hoje, em junho de 2009, temos 54 Universidades que adotaram o sistema), possui algum tipo de ação afirmativa, em praticamente todas, o desempenho dos alunos cotistas é igual ou superior ao dos não-cotistas.

Dessa forma que mais assusta é justamente isto. É, apesar de todas as provas, das várias demonstrações de que o sistema de cotas tem sido um instrumento fundamental na concessão de oportunidades a quem, mesmo sendo possuidor da qualificação necessária, era injustamente excluído, perceber-se que os maiores adversários dessa ação afirmativa desconsideram todas essas evidências e insistem na sua cantilena desprovida de qualquer embasamento verdadeiro.

Acreditemos, contudo na capacidade do ser humano de superar a si mesmo, derrotando, definitivamente, seus conceitos equivocados e seus preconceitos estúpidos, afinal, como nos legou um dos maiores defensores dos direitos humanos e das ações afirmativas, já citado acima, o Dr. Martin Luther King:

Nós não somos o que gostaríamos de ser. Nós não somos o que ainda iremos ser. Mas, graças a Deus, não somos mais quem nós éramos.

* Almiro Sena é Promotor de Justiça do Ministério Público da Bahia, Coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate à Discriminação, Representante do MP-BA no Conselho Estadual de Direitos Humanos e Mestrando em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social pela Faculdade Visconde de Cairú.

http://www.bahianoticias.com.br/noticias/artigos/2008/12/29/147,cotas-de-talento.html

recebido de Valdo Lumumba - negrodeluz@yahoo.com.br

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