Movimentos sociais protagonizam audiência sobre cotas
raciais
Pelo menos 400 pessoas estiveram reunidas na audiência
pública que sacudiu a Assembleia Legislativa de São Paulo, no final da tarde de
quarta-feira (13), que seguiu noite adentro. Na pauta, as cotas raciais nas
universidades públicas paulistas. Estudantes, negros e brancos, além dos
movimentos pró-cotas, foram os grandes protagonistas do debate, levando o
recado aos deputados: “queremos debater e construir uma política inclusiva de
cotas.”
Por Deborah Moreira - Da Redação do Vermelho
14 de Março de 2013 - 16h12
Os movimentos negro e estudantil deixaram claro que não
passará desapercebido o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior
Público Paulista (Pimesp), proposto de forma unilateral pelo governo Geraldo
Alckmin (PSDB), impondo barreiras para a implementação da lei de cotas raciais
nas universidades do estado. Além de debater, os movimentos querem dar sua
contribuição para a democratização da universidade.
Inicialmente marcado para acontecer no auditório Franco
Montoro, o debate foi transferido a pedido da deputada estadual Leci Brandão
(PCdoB), presidenta da Comissão de Educação e Cultura, que realizou a audiência
em conjunto com a bancada do PT. A presidenta da sessão solicitou um plenário
maior devido a grande quantidade de presentes, o que acabou atrasando em meia
hora o evento. Mesmo após quatro horas, a maioria permaneceu até o final, após
as diversas intervenções de representantes do Conselho de Reitores das
A deputada comunista Leci Brandão até tentou conter os
ânimos, mas a todo instante os estudantes faziam intervenções, entoavam
palavras de ordem, levantavam cartazes, imprimindo na audiência a rebeldia
necessária e na medida em que, ao final, foi saudada e reconhecida por Leci.
Em um desses momentos protagonizados pelos universitários
presentes, eles cantaram o verso bastante simbólico do poeta baiano, José
Limeira, em Negro homem, negra poesia, quando foi apontado na plateia o
professor e cientista social da Universidade de São Paulo (USP), Kabengele
Munanga: “Por menos que conte a história. Não te esqueço meu povo. Se Palmares
não vive mais. Faremos Palmares de novo”.
O presidente da União de Negros pela Igualdade (Unegro),
Edson França, presente na audiência, ressaltou ao Vermelho o significado da
audiência pública: "Para nós a audiência é bastante relevante para
primeiro mobilizar a Casa, os parlamentares para esse debate da cota. A Casa
está muito distante disso. O governo Alckmin apresentou uma proposta, para o
colegiado, mas como aqui é o espaço de representação do povo paulista, os
deputados estaduais precisam entrar nesse debate. A gente tem percebido que em
outros estados os parlamentos estaduais foram sujeitos bastante ativos no
debate das cotas [raciais], assim foi quando ocorreu a discussão em nível
federal, e assim precisa ser aqui em São Paulo. Temos um mandato bastante
conservador no estado de São Paulo e a Casa está conservadora, a maioria da
base do governo tem silenciado pontos importantes para os paulistas".
Edson e outras lideranças dos movimentos presentes
defenderam o aproveitamento dos projetos de lei que já foram aprovados,
discutidos e que traduzem a luta pela implementação das cotas raciais existente
há mais de 10 anos.
“Viemos denunciar o caráter retrógrado, conservador e
discriminatório dessa proposta do governo Alckmin e que desconsidera os 10 anos
de cotas no Brasil. Não estamos iniciando uma discussão. O Brasil já tem uma
discussão acumulada, tem resultados, tem avaliações apresentadas para o público
e não se pode ignorar esse conhecimento coletivo do país. Não queremos
categorias diferenciadas de cotistas. Queremos para São Paulo os mesmos
direitos que os estudantes de outros estados têm”, destacou ele.
Por fim, Edson França também observou que a presença maciça
de estudantes e militantes no plenário representa a força e o protagonismo que
os movimentos têm nessa pauta: “É importante unificar de maneira coletiva uma
proposta. Não só não queremos o Pimesp porque é uma proposta segregacionista,
como queremos um modelo que já tenha sido proposto aqui na Casa, como o PL 530,
assinado por 28 deputados, que atende o interesse da população pobre e negra do
estado, que tem lutado pelas cotas”, completou o presidente da Unegro, em
plenário.
Outros dois importantes representantes do movimento negro
que estavam presentes, também foram convidados a falar na audiência, em
nome do movimento negro e entidades integrantes da Frente Pró-Cotas do Estado
de São Paulo. Douglas Belchior, da Uneafro e o professor Silvio Almeida, do
Instituto Luiz Gama.
“Depois da medida truculenta do governo de tentar impor um
programa e apresentá-lo à sociedade em dezembro, sem dialogar com a sociedade,
os movimentos se organizaram e reagiram com um grande manifesto bastante representativo.
Nós estamos vencendo esse debate, a cada dia novos professores, setores da
sociedade se colocam contra esse programa, esse projeto autoritário do Alckmin
e do PSDB, bem como das reitorias. Hoje temos a oportunidade de iniciar um
debate olho no olho, cara a cara com os reitores”, desabafou Douglas Belchior
em entrevista ao Vermelho, pouco antes de subir ao plenário. “É um debate
positivo, propositivo. Saímos daqui maiores do que quando chegamos”, concluiu.
De acordo com os representantes das organizações presentes,
as mesmas não foram consultadas, nem mesmo a comunidade acadêmica das
universidades paulistas estaduais, o que teria “atropelado os processos
internos nas universidades de debate e diálogo”.
Qual o mérito do Pimesp?
Silvio Arruda esmiuçou, em sua fala durante a audiência, que
o Pimesp traz três tipos de problemas: de ordem política, tendo em vista que
está sendo imposto e não debatido, construído coletivamente; de ordem técnica,
já que a construção do projeto em si, pouco se sabe sobre como foi feita e por
quem foi construído, quais especialistas assinam o projeto; o terceiro, de
ordem jurídica, que impede o acolhimento desse programa como um programa
universal a ser implementado na universidade.
“Se o programa é de inclusão por mérito, qual o mérito das
pessoas que construíram esse projeto? Não estou dizendo que não tenha, mas eu
quero saber, quero ser informado para que eu possa discuti-lo com essas
pessoas, já que o critério é de meritocracia para ocupar o espaço de poder”,
exclamou Silvio Almeida sendo bastante aplaudido.
College
Silvio Almeida fez questão de explicar o que é o college,
uma espécie de sala de espera para estudantes de baixa renda e negros.
“Por fim, sobre as questões de ordem jurídica, esse projeto
cria um grupo chamado college, onde estariam os alunos por um ano ou dois anos,
em uma etapa intermediária para poderem ingressar na universidade, fazendo um
curso técnico. Agora, eu não sei quem foi que concebeu essa ideia do college,
será que é eficiente? Não há dados sobre isso. Mas parece uma proposta
segregacionista, porque é uma proposta da Univesp, de ensino à distância, e,
portanto, será negado a esses alunos a convivência universitária. E quem olhar
a grade curricular desse curso verá coisas do tipo ‘empreendedorismo’,
‘liderança’, ‘organização do trabalho’. Agora, quem conseguir chegar ao final
de dois anos do curso, vai se formar no quê? Em organização do tempo? Ou
liderança, empreendedorismo? Vai trabalhar aonde?”, indignou-se Silvio, que
também é professor de direito e metodologia científica.
“Há dados distorcidos sem citação de fontes. Falando como
professor, se um aluno meu apresenta um projeto com dados sem comprovação eu
reprovo”, concluiu o representante do movimento negro sob muitas palmas.
“É necessário a nova abolição, pra trazer de volta a minha
liberdade”
Por volta das 20h30, depois de muitos representantes dos
movimentos e das reitorias falarem, a deputada Leci Brandão quebrou o
protocolo, deixando temporariamente a presidência da mesa – entregando-a
ao deputado Adriano Diogo (PT) – para dar seu próprio testemunho sobre a
questão racial.
Citando os versos do sambista Cartola, a canção Autonomia,
Leci falou de sua importância, referindo-se à autonomia universitária, mas
enfatizando que é preciso valorizá-la.
“Ai! se eu tivesse autonomia
Se eu pudesse gritaria
Não vou, não quero
Escravizaram assim um pobre coração
É necessário a nova abolição
Pra trazer de volta a minha liberdade”
“Cartola disse isso. E eu estou dizendo o seguinte: se eu
tivesse autonomia, se eu pudesse eu gritaria que todas as pessoas têm direito
ao acesso, à inclusão, independentemente da cor da pele, da religião, da opção
sexual. Todas as pessoas, absolutamente todas as pessoas, têm direito à
educação”, parafraseou a compositora e cantora.
Bastante emocionada, Leci, que é a segunda mulher negra a
assumir um mandato de deputado, ao longo de toda a história da Alesp, lembrou
do sofrimento daqueles que chegaram ao país a bordo dos navios negreiros: “Sabe
o que acontece quando você favorece algumas pessoas, e desfavorece outras? Isso
se chama discriminação. Eu acho que mérito, louvor, sabe o que é mérito? O seio
das escravas negras que alimentaram a elite branca. Sabe o que é mérito? São os
negros que foram para a Guerra do Paraguai e morreram. Sabe o que é mérito? São
as mulheres e homens que foram torturados e dizimados e por isso temos a
Comissão da Verdade aqui, hoje”.
Mais uma vez parafraseando Cartola, ela encerrou seu
discurso: “Isso é mérito e autonomia. Se eu pudesse gritaria, não vou, não
quero, eu não quero as cotas das cadeias, as cotas do analfabetismo, se eu
pudesse eu gritaria: eu quero as cotas da educação para todas as pessoas”.
Antes de voltar à presidência, Leci lembrou sua trajetória,
de momentos que foi chamada de “enxerida, que já teve na lista de subversiva,
que já foi chamada de radical, encrenqueira, barraqueira” por já ter apontado
para a importância das cotas. “Porque essa palavra que todo mundo disse aqui
hoje, cotas, eu já falo há mais de 25 anos nos palcos”, declarou a deputada
comunista.
Leci Brandão expressou sua alegria e satisfação em ver
tantas pessoas reunidas, afirmando que já havia agradecido muito aos seus
orixás, além de agradecer ao presidente Lula pela criação da Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003, tornando-se a
primeira secretaria com status de ministério. “O presidente Lula criou essa
secretaria por conta do movimento negro. O movimento negro já vem fazendo a
luta das cotas”, frisou a parlamentar, dando um recado aos reitores presentes.
“Mas porque que eu estou feliz? Eu to feliz porque estou
vendo aqui nessa plateia a diversidade: temos negros, brancos, morenos, loiros.
Está todo mundo aqui como cidadãos brasileiros. Mas estou mais contente porque
estou vendo cidadãos jovens, porque tem muita gente que gosta de falar mal de
jovens, que jovem é maluco. Mas não é isso não. Pode pensar o que for, pode
beber o que for, pode fumar o que for, mas [o jovem] pensa, pensa e está aqui”,
destacou Leci Brandão, sendo bastante aplaudida.
No final da audiência, a presidenta da Mesa determinou,
acatando sugestões dos movimentos presentes, que seja formada uma comissão para
dialogar com todos os parlamentares com a finalidade de "fazer um projeto
único, atualizado, com a participação de todos", tendo em vista que existe
"um aglomerado de boas ideias”.
Presenças e ausência
A grande ausência sentida foi a do reitor da USP João
Grandino Rodas, que enviou a professora pró-reitora Telma Zorn. Esta, por sua
vez, tentou deixar o auditório sem que fosse percebida. O deputado Alencar
Santana (PT), interrompeu a fala de uma estudante para chamar a atenção da
pró-reitora.
"Professora, não sei se a senhora está indo embora ou
não. Está? Bom, só queria fazer uma indagação que vossa excelência está numa
audiência, aqui nesta casa, o reitor não veio, mas peço que respeite os
estudantes que aqui estão". Sob um coro que gritava "fica, fica,
fica", Telma Zorn retornou ao seu lugar.
Também não compareceu o reitor da Universidade de Campinas
(Unicamp), Fernando Ferreira Costa, que mandou como representante o professor
João Frederico.
Estiveram presentes e deram início aos debates o reitor da
Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Júlio Cesar Durigan, e o
coordenador da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), Carlos
Vogt.
Fonte: Vermelho
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